O Evangelho de Mateus 4,15-16 refere
com precisão que, «quando Jesus soube que João Baptista tinha sido preso,
retirou-se para a Galileia» (Mateus 4,12), e, «desde então, começou a pregar»
(Mateus 4,17a). Uma prolepse e uma surpresa, podemos dizer mesmo um escândalo.
A prolepse: ao anotar a prisão de João Baptista, o narrador não está tanto a
registrar um facto histórico, mas mais a desvendar já aquilo que um dia
acontecerá também a Jesus. A surpresa e o escândalo: era do sentir comum que o
anúncio messiânico fosse feito no coração do judaísmo, em Jerusalém, e não numa
região periférica, desprezada e contaminada pelo paganismo, como era esta
«Galileia dos pagãos» (Mateus 4,15). É para justificar e iluminar este estranho
e inesperado começo, que Mateus se vê como que obrigado a citar por inteiro a
passagem apropriada de Isaías 8,23-9,1.
Luz de Jesus a iluminar a
noite da Galileia. Voz de Jesus a romper aquele espesso manto de silêncio:
«Convertei-vos, porque está próximo de vós o Reino dos Céus!» (Mateus 4,17b).
Esplêndida Luz, esplêndida Voz, esplêndido Amor de Deus, esplêndida surpresa
divina! Ainda antes de nos convidar a que nos interessemos por Deus, a Bíblia
mostra que é Deus que se interessa primeiro por nós, tomando a iniciativa de
percorrer as nossas estradas para nos vir visitar a nossas casas! É esta a
maravilha desconcertante do Evangelho!
E assim continua no velho
texto de Mateus e nas nossas estradas de hoje. Verificação: Jesus caminha ao
longo das praias do Mar da Galileia, e vê dois irmãos, Simão e André, ocupados
nos trabalhos da pesca, e diz-lhes: «Vinde atrás de mim (deûte opísô mou)!»
(Mateus 4,19). A resposta é imediata: «Deixaram logo as redes, e seguiram-no!»
(Mateus 4,20). E andando um pouco mais, viu outros dois irmãos, Tiago e João,
que, com o pai, Zebedeu, consertavam as redes na barca. Também os chamou. E
também eles deixaram logo a barca e o pai, e seguiram-no (Mt 4,21-22).
Note-se bem que Jesus
desce ao nosso mundo, caminha pelas nossas estradas e vem ter connosco aos
nossos lugares de trabalho. E é aí que nos chama. Não espera por nós no cenário
sagrado das nossas Igrejas! Não nos obriga a aprender uma doutrina, nem sequer
nos entrega um projecto de vida, mas chama-nos a segui-lo («vinde atrás de
mim»), e partilha connosco a sua vida, como o Mestre faz com os seus
discípulos. Não nos põe a fazer uma espécie de estágio, para que um dia nos
tornemos Mestres. Nós permanecemos sempre discípulos, e um só é o Mestre. Não
nos coloca num estágio, num estado, num estrado, numa estante, mas num caminho!
E um dia mais tarde, ouvi-lo-emos ainda dizer: «Ide!». É sempre no
caminho que nos deixa.
Tu, Senhor, Tu falas
E um caminho novo se abre a nossos
pés,
Uma luz nova em nossos olhos arde,
Átrio de luminosidade,
Pão
De trigo e de liberdade,
Claridade que se ateia ao coração.
Lume novo, lareira acesa na cidade,
És Tu, Senhor, o clarão da tarde,
A notícia, a carícia, a
ressurreição.
Passa outra vez, Senhor, dá-nos a
mão,
Levanta-nos,
Não nos deixes ociosos nas praças,
Sentados à beira dos caminhos,
Sonolentos,
Desavindos,
A remendar bolsas ou redes.
Sacia-nos.
Envia-nos, Senhor,
E partiremos
O pão,
O perdão,
Até que em cada um de nós nasça um
irmão.
António Couto