sábado, 28 de fevereiro de 2015

"Olhares sobre a cultura"

... Ao desafio "Olhares sobre a cultura", o novo prémio Pessoa (Henrique Leitão) fez jus à distinção e discorreu com originalidade e firmeza sobre o pensamento de Whitehead e Steiner para demonstrar que o desenvolvimento científico europeu é tributário de um caldo cultural particular que lhe deu um "distinctive tone of thought" [tom distintivo do pensamento] e o tornou, reconhecidamente, no maior empreendimento intelectual em que a Humanidade se envolveu.Que especificidade é então essa que tanto valorizou o nosso progresso científico? A de termos sido incrustados ao longo de séculos por duas convicções fundamentais: a convicção instintiva da existência de uma ordem no Mundo natural (ou seja, a convicção de que "cada ocorrência detalhada pode ser correlacionada com os seus antecedentes de uma maneira perfeitamente definida") e a convicção, igualmente axiomática, de que a mente humana sempre será capaz de explicar qualquer problema ou facto natural. Sempre, ilimitadamente.Mas como assimilamos a convicção instintiva da racionalidade e a crença axiomática no progresso ilimitado?Henrique Leitão mostrou, com clareza meridiana, a partir sobretudo das respostas de Whitehead, como ambas se tornaram possíveis por via do cristianismo.Ainda que com raízes judaicas e gregas, foi o cristianismo, em particular pela teologia medieval, que pressionou durante séculos a mente europeia com a ideia "de que o Mundo natural contém uma racionalidade intrínseca e autónoma que é o reflexo da própria racionalidade de Deus, do logos divino" e de que "o Mundo natural não foi só feito por Deus mas foi especificamente feito para nós e, portanto, comensurado à nossa razão, sempre acessível à mente humana".Tenho para mim que, naquela noite, Henrique Leitão permitiu, pairando muito acima de qualquer crença individual, reabrir o debate sobre o lugar do cristianismo no processo de construção europeia e sobre a respetiva ausência no preâmbulo da convenção. (Cristina Azevedo, in Jornal de Notícias)

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

QUARESMA COM PÁSCOA

Senhor, dai-me uma boa digestão e qualquer coisa também para digerir. Dai-me a saúde do corpo e o bom humor necessário para a manter. Dai-me, Senhor, uma alma simples que saiba aprender com tudo o que é bom e não se assuste à vista do mal, antes encontre sempre o modo de colocar cada coisa no seu lugar. Dai-me uma alma que não conheça o tédio, os resmungos, os suspiros, os lamentos, e não permitais que me preocupe excessivamente com esta coisa demasiado embaraçante que se chama «eu». Dai-me, Senhor, o sentido do bom humor. Concedei-me a graça de compreender uma brincadeira para descobrir na vida um pouco de alegria e partilhá-la também com os outros. Amen. (São Tomás More)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

COMO VIVER A QUARESMA NO SÉC. XXI

É esta a pergunta que invade o espírito de muitos cristãos quando se inicia o tempo quaresmal. A meu ver, a melhor resposta encontrá-mo-la relendo o evangelho segundo São Mateus:«Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens, para vos tornardes notados por eles; de outro modo, não tereis nenhuma recompensa do vosso Pai que está no Céu. Quando, pois, deres esmola, não permitas que toquem trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, a fim de serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo: Já receberam a sua recompensa. Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita, a fim de que a tua esmola permaneça em segredo; e teu Pai, que vê o oculto, há-de premiar-te. Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar de pé nas sinagogas e nos cantos das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando orares, entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há-de recompensar-te. Nas vossas orações, não sejais como os gentios, que usam de vãs repetições, porque pensam que, por muito falarem, serão atendidos. Não façais como eles, porque o vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós lho pedirdes.» (6, 1-8) Aqui encontramos algumas pistas muito concretas e eficazes. 1) A primeira é óbvia: é a do retorno à nossa relação radical com Deus através da oração. 2) A segunda pista, o jejum, é um convite a redescobrir o essencial em nossas vidas, em clarificar a escala de valores. Certamente, se o quisermos, podemos privar-nos de algo acessório ou, talvez até, de algo necessário que seja um peso ou impedimento à realização da nossa liberdade. Trata-se de recuperar o controlo sobre a própria vida, é como quando vamos iniciar uma descida acentuada e nos é mostrada a placa para fazermos o teste dos travões do automóvel...o objectivo não é parar mas sim assumir o comando da manobra. 3) A terceira pista, a esmola deriva, normalmente das duas primeiras, porque nenhum de nós está só neste mundo. Na vida de comunhão com o Ressuscitado, o outro pode e deve converter-se em «amigo», em «companheiro» (isto é, aquele com quem partilho o pão, o alimento, os recursos vitais), o «irmão»...no fundo, pretende-se que cada um de nós se torne solidário: sabendo que a solidariedade profunda não passará nunca de moda e será sempre profética. Uma santa Quaresma com Páscoa! p. Fernando, CM

sábado, 7 de fevereiro de 2015

"VAMOS" - A "JORNADA" DE CAFARNAUM

1. De madrugada a madrugada. Depois de entrarem [Jesus e os seus discípulos; ninguém como Marcos vincula Jesus aos seus discípulos] em Cafarnaum, na manhã de sábado entra Jesus na sinagoga de Cafarnaum e ensinava (Marcos 1,21). Ei-los agora que saem [Jesus e os seus discípulos: verbo no plural] da sinagoga, e entram na casa de Simão e de André (Marcos 1,29). Trata-se de um «relato de começo». Saindo da casa antiga, entram, uns 30 metros a sul, na casa nova, de Pedro. A sogra de Simão está deitada com febre. Jesus segura-lhe (kratéô) na mão (Marcos 1,31), expressão lindíssima que indica no Antigo Testamento o gesto protector com que Deus protege o orante (Salmo 73,23), Israel (Isaías 41,13), o seu servo (Isaías 42,6). E a sogra de Simão «levantou-se» (êgeírô), verbo da ressurreição, e pôs-se a servi-los (diêkónei: imperfeito de diakonéô) de forma continuada, como indica o uso do verbo no imperfeito. A sogra de Simão é uma das sete mulheres que, nos Evangelhos, «servem» Jesus e os outros. Ela é bem a figura da comunidade cristã nascente, que passa da escravidão à liberdade, da morte à vida, gerada, protegida, guardada e edificada por Jesus no lugar seguro da casa de Pedro. 2. À tardinha, já sol-posto, primeiro dia da semana [o dia muda com o pôr do sol], toda a cidade de Cafarnaum está reunida diante da porta daquela casa, para ouvir Jesus e ver curados por Ele os seus doentes. 3. Na madrugada do mesmo primeiro dia da semana, muito cedo, tendo-se levantado (anístêmi), outra prolepse da madrugada da Ressurreição que já se avista no horizonte, Jesus sai sozinho para rezar (Marcos 1,35), mas os discípulos correm logo a procurá-lo para o trazer de volta a Cafarnaum, pois, dizem eles, todas as pessoas o querem ver e ter. Ninguém o quer perder (Marcos 1,36-37). 4. Mas Jesus desconcerta os seus discípulos, e abre-lhes já os futuros caminhos da missão: «VAMOS, diz Jesus, a outros lugares, às aldeias vizinhas, para que TAMBÉM (kaí usado adverbialmente) ali ANUNCIE (kêrýssô) o Evangelho» (Marcos 1,38). Importante e intenso dizer. ANUNCIAR, verbo grego kêrýssô, é todo o afazer de Jesus, enche por completo o seu programa e o seu caminho. Ora, ANUNCIAR, kêrýssô, é dizer em voz alta a MENSAGEM que outro nos encarregou de transmitir. Aqui, o outro é Deus. Jesus é, então, o MENSAGEIRO de Deus. O ANUNCIADOR, o MENSAGEIRO, não fala em seu próprio nome, não emite opiniões. Fala em nome de Deus. 5. Prossigamos. Com aquele «vamos» [«vamos a outros lugares»], Jesus desinstala e agrafa a si os seus discípulos, apontando-lhes já o seu futuro trabalho de ANUNCIADORES do Evangelho pelo mundo inteiro. Mas é igualmente importante aquele TAMBÉM inclusivo [«para que também ali anuncie o Evangelho»]. É como uma ponte que une duas margens. Se, por um lado, prolépticamente, aponta o futuro, por outro lado, analepticamente, classifica como ANÚNCIO do Evangelho todos os afazeres da inteira «jornada de Cafarnaum», em que o verbo ANUNCIAR (kêrýssô) nunca apareceu. Ficamos, portanto, a saber que a toada do ANÚNCO do Evangelho é ensinar, libertar, acolher, curar, recriar. (António Couto, Bispo do Porto)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

FORTALECEI OS VOSSOS CORAÇÕES

SÍNTESE DA MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO PARA A QUARESMA DE 2015 Fortalecei os vossos corações (Tg 5, 8) Partindo de um versículo da carta de Tiago, o Papa Francisco, exorta-nos ao fortalecimento do coração e recorda-nos, uma vez mais, neste «tempo favorável» (cf. 2Cor 6, 2) da Quaresma, a “obrigação” de enfrentar a atitude egoísta da «indiferença». Isto é, “encontrando-me relativamente bem e confortável, esqueço-me dos que não estão bem! Hoje, esta atitude egoísta de indiferença atingiu uma dimensão mundial tal que podemos falar de uma globalização da indiferença”. Ora “a Deus não Lhe é indiferente o mundo, mas ama-o até ao ponto de entregar o seu Filho [...] E a Igreja é como a mão que mantém aberta esta porta, por meio da proclamação da Palavra, da celebração dos Sacramentos, do testemunho da fé que se torna eficaz pelo amor (cf. Gl 5, 6). […] Por isso, o povo de Deus tem necessidade de renovação, para não cair na indiferença nem se fechar em si mesmo”. Tendo em vista esta renovação, o Santo Padre, propõem-nos três textos para meditarmos: 1. «Se um membro sofre, com ele sofrem todos os membros» (1 Cor 12, 26): A Igreja. Diz-nos o Papa: “A Quaresma é um tempo propício para nos deixarmos servir por Cristo e, deste modo, tornarmo-nos como Ele. Verifica-se isto quando ouvimos a Palavra de Deus e recebemos os sacramentos, nomeadamente a Eucaristia. Nesta, tornamo-nos naquilo que recebemos: o corpo de Cristo. Neste corpo, não encontra lugar a tal indiferença”. E na Igreja, enquanto «comunhão dos santos», “aquilo que cada um possui, não o reserva só para si, mas tudo é para todos. E, dado que estamos interligados em Deus, podemos fazer algo mesmo pelos que estão longe, por aqueles que não poderíamos jamais, com as nossas simples forças, alcançar: rezamos com eles e por eles a Deus, para que todos nos abramos à sua obra de salvação”. 2. «Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9): As paróquias e as comunidades O Santo Padre conclui este ponto da mensagem com um desejo: “que os lugares onde a Igreja se manifesta, particularmente as nossas paróquias e as nossas comunidades, se tornem ilhas de misericórdia no meio do mar da indiferença!” Por isso, propõem-nos as seguintes perguntas: nas paróquias, comunidades cristãs, movimentos e grupos, “consegue-se porventura experimentar que fazemos parte de um único corpo? Um corpo que, simultaneamente, recebe e partilha aquilo que Deus nos quer dar? Um corpo que conhece e cuida dos seus membros mais frágeis, pobres e pequeninos? Ou refugiamo-nos num amor universal pronto a comprometer-se lá longe no mundo, mas que esquece o Lázaro sentado à sua porta fechada (cf. Lc 16, 19-31)?” Ora, para receber e fazer frutificar plenamente aquilo que Deus nos dá, deve-se ultrapassar as fronteiras da Igreja visível em duas direcções: • Em primeiro lugar, unindo-nos à Igreja do Céu na oração. • Em segundo lugar, atravessando o limiar que a põe em relação com a sociedade circundante, com os pobres e com os incrédulos. E conclui: “A Igreja é, por sua natureza, missionária, não fechada em si mesma, mas enviada a todos os homens. Esta missão passa pelo testemunho de Jesus que quer conduzir todos a Deus, a denúncia do mal e ver no próximo, o irmão e a irmã por quem Cristo morreu e ressuscitou. Tudo aquilo que recebemos, recebemo-lo também para eles. E, vice-versa, tudo o que estes irmãos possuem é um dom para a Igreja e para a humanidade inteira”. 3. «Fortalecei os vossos corações» (Tg 5, 8): Cada um dos fiéis Recorda-nos o Papa que, também como indivíduos, temos a tentação da indiferença. Estamos saturados de notícias e imagens impressionantes que nos relatam o sofrimento humano, sentindo ao mesmo tempo toda a nossa incapacidade de intervir. Que fazer para não nos deixarmos absorver por esta espiral de terror e impotência? • Em primeiro lugar, podemos rezar na comunhão da Igreja terrena e celeste. Não subestimemos a força da oração de muitos! A iniciativa 24 horas para o Senhor, que espero se celebre em toda a Igreja – mesmo a nível diocesano – nos dias 13 e 14 de Março, pretende dar expressão a esta necessidade da oração. • Em segundo lugar, podemos levar ajuda, com gestos de caridade, tanto a quem vive próximo de nós como a quem está longe. • Em terceiro lugar, converter-se a um percurso de “formação do coração”. Ter um coração misericordioso não significa ter um coração débil. Quem quer ser misericordioso precisa de um coração forte, firme, fechado ao tentador mas aberto a Deus; um coração que se deixe impregnar pelo Espírito e levar pelos caminhos do amor que conduzem aos irmãos e irmãs; no fundo, um coração pobre, isto é, que conhece as suas limitações e se gasta pelo outro. E conclui esta mensagem manifestando o desejo de rezar connosco a Cristo: «Fac cor nostrum secundum cor tuum – Fazei o nosso coração semelhante ao vosso» (Súplica das Ladainhas ao Sagrado Coração de Jesus). Pois, “teremos assim um coração forte e misericordioso, vigilante e generoso, que não se deixa fechar em si mesmo nem cai na vertigem da globalização da indiferença”. Uma Santa Quaresma para todos! P. Fernando, CM